terça-feira, março 11, 2008

XX

Para Athos Damasceno Ferreira

Estou sentado sobre a minha mala
No velho bergantim desmantelado...
Quanto tempo, meu Deus, malbaratado
Em tanta inútil, misteriosa escala!

Joguei a minha bússola quebrada
Às águas fundas... E afinal sem norte,
Como o velho Sindbad de alma cansada
Eu nada mais desejo, nem a morte...

Delícia de ficar deitado ao fundo
Do barco, a vos olhar, velas paradas!
Se em toda parte é sempre o Fim do Mundo

Pra que partir? Sempre se chega, enfim...
Pra que seguir empós das alvoradas
Se, por si mesmas, elas vêm a mim?



[Mario Quintana; A Rua dos Cataventos, 1940]

III

Quando os meus olhos de manhã se abriram,
Fecharam-se de novo, deslumbrados:
Uns peixes, em reflexos doirados,
Voavam na luz: dentro da luz sumiram-se...

Rua em rua, acenderam-se os telhados.
Num claro riso as tabuletas riram.
E até no canto onde os deixei guardados
Os meus sapatos velhos refloriram.

Quase que eu saio voando céu em fora!
Evitemos, Senhor, esse prodígio...
As famílias, que haviam de dizer?

Nenhum milagre é permitido agora...
E lá se iria o resto de prestígio
Que no meu bairro eu inda possa ter!...





[Mario Quintana; A Rua dos Cataventos, 1940]

segunda-feira, março 10, 2008

IX


Para Emilio Kemp

A mesma ruazinha sossegada,
Com as velhas rondas e as canções de outrora...
E os meus lindos pregões da madrugada
Passam cantando ruazinha em fora!

Mas parece que a luz está cansada...
E, não sei como, tudo tem, agora,
Essa tonalidade amarelada
Dos cartazes que o tempo descobra...

Sim, desses cartazes ante os quais
Nós às vezes paramos, indecisos...
Mas para quê?... Se não adiantam mais!...

Pobres cartazes por aí afora
Que inda anunciam: - ALEGRIA - RISOS
Depois do Circo já ter ido embora!...



[Mario Quintana; A Rua dos Cataventos, 1940]

domingo, março 09, 2008

Canção da Primavera

Para Erico Veríssimo


Primavera cruza o rio
Cruza o sonho que tu sonhas.
Na cidade adormecida
Primavera vem chegando.

Catavento enlouqueceu,
Ficou girando, girando.
Em torno do catavento
Dancemos todos em bando.

Dancemos todos, dancemos,
Amadas, Mortos, Amigos,
Dancemos todos até

Não mais saber-se o motivo...
Até que as paineiras tenham
Por sobre os muros florido!





[Mario Quintana; Canções, 1946]

XXIII

Cidadezinha cheia de graça...
Tão pequenina que até causa dó!
Com seus burricos a pastar na praça...
Sua igrejinha de uma torre só...

Nuvens que venham, nuvens e asas,
Não param nunca nem um segundo...
E fica a torre, sobre as velhas casas,
Fica cismando como é vasto o mundo!...

Eu que de longe venho perdido,
Sem pouso fixo (a triste sina!)
Ah, quem me dera ter lá nascido!

Lá toda a vida poder morar!
Cidadezinha... Tão pequenina
Que toda cabe num só olhar...


[Mario Quintana; A Rua dos Cataventos, 1940]

sábado, março 08, 2008

X

Eu faço versos como os saltimbancos
Desconjuntam os ossos doloridos.
A entrada é livre para os conhecidos...
Sentai, Amadas, nos primeiros bancos!

Vão começar as convulsões e arrancos
Sobre os velhos tapetes estendidos...
Olhai o coração que entre gemidos
Giro na ponta dos meus dedos brancos!

"Meu Deus! Mas tu não mudas o programa!"
Protesta a clara voz das Bem-Amadas.
"Que tédio!" o coro dos Amigos clama.

"Mas que vos dar de novo e de imprevisto?"
Digo... e retorço as pobres mãos cansadas:
"Eu sei chorar... Eu sei sofrer... Só isto!"


[Mario Quintana; A Rua dos Cataventos, 1940]


sexta-feira, março 07, 2008

Canção da Ruazinha Desconhecida

Ruazinha que eu conheço apenas
Da esquina onde ela principia...

Ruazinha perdida, perdida...
Ruazinha onde Marta fia...

Ruazinha em que eu penso as vezes
Como quem pensa numa outra vida...

E para onde hei de mudar-me, um dia,
Quando tudo estiver perdido...

Ruazinha da quieta vida...
Tristonha... tristonha...

Ruazinha onde Marta fia
e onde Maria, na janela, sonha...


[Mario Quintana; Canções, 1946]

quinta-feira, março 06, 2008

Canção de muito longe

Foi-por-cau-sa-do-bar-quei-ro

E todas as noites, sob o velho céu arqueado de bugigangas,
A mesma canção jubilosa se erguia.

A canoooavirou
Quem fez elavirar? uma voz perguntava.

Os luares extáticos...
A noite parada...

Foi por causa do barqueiro,
Que não soube remar.








[Mario Quintana; Canções, 1946]

quarta-feira, março 05, 2008

Canção Azul

Triste, Poeta, triste a florzinha azul que sem querer pisaste no teu caminho...
Miosótis disseste, inclinado um instante sobre ela.
E ela acabou de morrer, aos poucos, dentre a relva úmida.
Sem nunca ter sabido que se chamava miosótis.
Nem quereria impregnar, com o seu triste encanto,
O teu poema daquele dia...




[Mario Quintana; Canções, 1946]

terça-feira, março 04, 2008

segunda-feira, março 03, 2008

Clopt! Clopt!

É a ruazinha que tosse, tosse, engasgada com o homem da muleta.



[Mario Quintana; Sapato Florido, 1948]

Janela de Abril

Tudo tão nítido! O céu rentinho às pedras. Pode-se enxergar até os nomes que andaram traçando a carvão naquele muro. Mas, mesmo que o céu soubesse ler, isso não teria agora a mínima importância. E sente-se que Nosso Senhor, em comemoração de abril, instituirá hoje valiosos prêmios para o riso mais despreocupado, para o sapato mais rinchador, para a pandorga mais alta sobre o morro.








[Mario Quintana; Sapato Florido, 1948]

Carreto

Amar é mudar a alma de casa.






[Mario Quintana; Sapato Florido, 1948]

Viração


Voa um par de andorinhas, fazendo verão. E vem uma vontade de rasgar velhas cartas, velhos poemas, velhas contas recebidas. Vontade de mudar de camisa, por fora e por dentro... Vontade... para que esse pudor de certas palavras?... vontade de amar, simplesmente.





[Mario Quintana; Sapato Florido, 1948]

domingo, março 02, 2008

Exegese

- Mas que quer dizer esse poema? perguntou-me alarmada a boa senhora.

- E que quer dizer uma nuvem? - retruquei triunfante.

- Uma nuvem? - diz ela. - Uma nuvem umas vezes quer dizer chuva, outras vezes bom tempo...






[Mario Quintana; Sapato Florido, 1948]

Velha História

Era uma vez um homem que estava pescando, Maria. Até que apanhou um peixinho! Mas o peixinho era tão pequenininho e inocente, e tinha um azulado tão indescritível nas escamas, que o homem ficou com pena E retirou cuidadosamente o anzol e pincelou com iodo a garganta do coitadinho. Depois guardou-o no bolso traseiro das calças, para que o animalzinho sarasse no quente. E desde então ficaram inseparáveis. Aonde o homem ia, o peixinho o acompanhava a trote, que nem um cachorrinho Pelas calçadas. Pelos elevadores. Pelos cafés. Como era tocante vê-los no "17" - o homem, grave, de preto, com uma das mãos segurando a xícara de fumegante moca, com a outra lendo o jornal, com a outra fumando, com a outra cuidando do peixinho, enquanto este, silencioso e levemente melancólico, tomava laranjada por um canudinho especial...

Ora, um dia o homem e o peixinho passeavam à margem do rio onde o segundo dos dois fora pescado. E eis que os olhos do primeiro se encheram de lágrimas. E disse o homem ao peixinho:
"Não, não me assiste o direito de te guardar comigo. Por que roubar-te por mais tempo ao carinho do teu pai, da tua mãe, dos teus irmãozinhos, da tua tia solteira? Não, não e não! Volta para o seio da tua família. E viva eu cá na terra sempre triste!..."

Dito isto, verteu copioso pranto e, desviando o rosto, atirou o peixinho n'água. E a água fez um redemoinho, que foi depois serenando, serenando.. até que o peixinho morreu afogado...



[Mario Quintana; Sapato Florido, 1948]






Clique e veja:

Velha História - animação de Claudia Jouvin com narração de Marco Nanini.


A Bela e o Dragão

As coisas que não têm nome assustam, escravizam-nos, devoram-nos...
Se a bela faz de ti gato e sapato, chama-lhe, por exemplo, A BELA
DESDENHOSA. E ei-la rotulada, classificada, exorcizada, simples marionete
agora, com todos os gestos perfeitamente previsíveis, dentro do seu papel de
boneca de pau. E no dia em que chamares a um dragão de JOLI, o dragão
te seguirá por toda parte como um cachorrinho...



[Mario Quintana; Sapato Florido, 1948]

sábado, março 01, 2008

Momento

O homem parou, cheio de dedos, para procurar os fósforos nos bolsos.
A insidiosa frescura do mar lhe mandou um pensamento suicida.
E veio um riso límpido e irresistível - em i, em a, em o - do fundo de
um pátio da infância. Um riso... senão quando o homem achou os
fósforos e a vida recomeçou. Apressada, implacável, urgente. A vida é cheia de pacotes...









[Mario Quintana; Sapato Florido, 1948]