segunda-feira, novembro 20, 2006

A Canção

Era a flor da morte
E era uma canção...

Tão linda que só se poderia ler dançando

E que nada dizia
Em sua graça ingênua
Dos subterrâneos êxtases e horrores em que estavam mergulhadas as suas raízes...
Mas estava fragilmente pintada sobre o véu do silêncio

Onde a morta jazia com seus cabelos esparsos
Com seus dedos sem anéis
Com seus lábios imóveis

E que talvez houvessem desaprendido para sempre até as sílabas
que outrora pronunciavam meu nome...
Onde a morta jazia na sua misteriosa ingratidão!

Era uma pobre canção,
Ingênua e frágil,
Que nada dizia...

[Mario Quintana; Aprendiz de Feiticeiro, 1950]



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segunda-feira, novembro 06, 2006

Os caminhos estão cheios de tentações

Os caminhos estão cheios de tentações.
Os nossos pés arrastam-se na areia lúbrica...
Oh! tomemos os barcos das nuvens!
Enfunemos as velas dos ventos!
Os nossos lábios tensos incomodam-nos como estranhas mordaças.
Vamos! vamos lançar no espaço - alto, cada vez mais alto! - a rede das estrelas...
Mas vem da terra, sobe da terra, insistente, pesado,
Um cheiro quente de cabelos...
A Esfinge mia como uma gata.
E o seu grito agudo agita a insônia dos adolescentes pálidos,
O sono febril das virgens nos seus leitos.
De que nos serve agora o Cristo do Corcovado?!
Há um longo, um arquejante frêmito nas palmeiras, em torno...
A Noite negra, demoradamente,
Aperta o mundo entre os seus joelhos.

[Mario Quintana; Aprendiz de Feiticeiro, 1950]



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quarta-feira, novembro 01, 2006

A Noite


A Noite é uma enorme Esfinge de granito negro
Lá fora.
Eu acendo minha lâmpada de cabeceira.
Estou lendo Sherlock Holmes.
Mas, nos ventres, há fetos pensativos desenvolvendo-se...
E há cabelos que estão crescendo, lentamente, por debaixo da terra,
Junto com as raízes úmidas...
E há cânceres... cânceres!... distendendo-se como lentos dedos...
Impossível, meu caro doutor Watson, seguir o fio desta sua confusa e deliciosa história.

A Noite amassa pavor nas entrelinhas.
É um grude espesso, obscuro...
Vontades de gritar claros nomes serenos,
PALLAS NAUSICAA ATHENA AI, mas os deuses se foram...
Só tu aí ficaste...
Só tu, do fundo da noite imensa, a agonizares eternamente na tua cruz!...

[Mario Quintana; Aprendiz de Feiticeiro, 1950]